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segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O presidente da República e a campanha eleitoral (por Cláuidio Gonçalves Couto)


Nunca antes na história democrática deste país um presidente da República empenhou-se tanto na campanha de seu sucessor. E as razões para isto são duas: nunca um presidente teve, combinadamente, tantos motivos e tantas condições para fazê-lo.

Três períodos de nossa história republicana não podem ser considerados nesta apreciação. A Primeira República (1889-1930), porque não contávamos naquele momento com um regime político competitivo - fosse liberal ou democrático -, de modo que a atuação dos presidentes e governadores restringia-se a conservar o jogo oligárquico de exclusão sistemática do acesso ao poder pelos opositores. A Era Vargas (1930-1945), já que se tratava de um regime autoritário unipessoal, durante o qual não ocorreram disputas presidenciais ou para governador. E o Autoritarismo Militar (1964-1985), já que também não permitia a competição pelo poder Executivo nacional e mesmo estadual (entre 1966 e 1982). Restam, portanto, dois períodos que se pode propriamente denominar como "democráticos": a assim chamada democracia "populista" (1945-1964), inaugurada após a deposição de Getúlio Vargas, e o atual regime em que vivemos, iniciado com o governo civil da Nova República (1985-1990).

Na eleição de 1945, em que Eurico Gaspar Dutra foi eleito presidente, Vargas não tinha como nem porque se empenhar na eleição do sucessor, já que era um ditador deposto e via ascender como candidato presidencial de um dos partidos que criou (o PSD) alguém tido por ele como um traidor - já que envolvido em sua deposição.

Já Vargas, quando eleito em 1950 pelo PTB, não contou com o apoio de Dutra - aliás, nem precisava, por se tratar de uma liderança incomensuravelmente maior que o então presidente -, ao passo que o candidato oficial do PSD, Cristiano Machado, foi abandonado por seus correligionários, originando o termo "cristianização".

Vargas se suicidou e nenhum de seus substitutos, Café Filho e Carlos Luz, tinha qualquer interesse em se empenhar na eleição de Juscelino Kubitschek - já que ambos conspiraram contra ele e contra a própria democracia. JK, por sua vez, pouco se mexeu para eleger o marechal Henrique Lott, pois já mirava nas eleições de 1965. O então presidente sabia que seu sucessor herdaria uma situação economicamente dificílima, sendo grande o potencial para o desgaste, de modo que não era desinteressante a vitória oposicionista naquele momento, como de fato ocorreu.

O inesperado é que o presidente eleito, apoiado pela UDN, Jânio Quadros, renunciaria pouco tempo depois, lançando o país numa crise da qual também não escapou o substituto, João Goulart, tragado pelo golpe militar que pôs fim a disputas sucessórias.

No retorno ao regime civil, em 1985, o presidente João Baptista Figueiredo não se empenhou na eleição de nenhum dos candidatos no colégio eleitoral, já que um era da oposição (Tancredo Neves) e o outro um desafeto dentro de seu partido (Paulo Maluf). José Sarney terminou de forma tão desastrosa seu mandato que não tinha como apoiar qualquer um dos dois candidatos oriundos da Aliança Democrática (Aureliano Chaves ou Ulysses Guimarães), os quais amargaram resultados vexatórios em 1989.

Fernando Collor renunciou para fugir ao impeachment e Itamar Franco, embora tenha terminado o governo gozando de popularidade, era menos importante para a eleição de Fernando Henrique Cardoso do que ele próprio - que auferia os méritos de ter concebido o Plano Real. Após ser reeleito, FHC foi evitado por José Serra na campanha de 2002, pois a impopularidade do presidente tucano àquele momento tornava o seu apoio pouco proveitoso.

Finalmente, é Lula quem termina seu segundo governo fruindo de uma avassaladora popularidade, numa situação econômica sob controle e contando com uma candidata de sua confiança e até então desconhecida da maior parte do eleitorado. Portanto, pela primeira vez na história estiveram presentes tanto os motivos como as condições para que um presidente brasileiro se envolvesse de corpo e alma na disputa sucessória.

Deste modo, embora surpreenda o envolvimento inaudito do presidente na campanha, ele se explica pela situação historicamente inusitada da atual eleição. O que não faz qualquer sentido é esperar do atual chefe do Poder Executivo um comportamento de Rainha da Inglaterra. Em primeiro lugar, porque não estamos num regime parlamentarista - muito menos de tipo monárquico - no qual existiria uma nítida separação entre as chefias de Estado e governo. No presidencialismo, o chefe do Executivo é, simultaneamente, chefe de Estado e de governo. E, como chefe de governo, é necessariamente o chefe de um partido (ou, ao menos, de uma coalizão).

Portanto, é natural que (podendo e querendo) o presidente da República se empenhe na eleição do sucessor. Em segundo lugar, um presidente, ao ser chefe de governo e de um partido, recebe da oposição um tratamento hostil que nada tem de anormal, mas que certamente não seria dispensado à chefe de Estado pela oposição de Sua Majestade. Isto só é possível em monarquias ou mesmo em repúblicas parlamentaristas - nas quais o presidente não é partidário.

Chamo a atenção para isto porque, no cenário de polarização retórica exacerbada que se erigiu nesta eleição, houve espaço até mesmo para exigir do presidente da República que fingisse ser a Rainha da Inglaterra. Por exemplo, no especioso "Manifesto em Defesa da Democracia" foi afirmado que "é constrangedor que o Presidente não entenda que o seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas vinte e quatro horas do dia. Não há 'depois do expediente' para um Chefe de Estado". Ora, tal afirmação não tem o menor cabimento, pois exige de um dos contendores eleitorais que se comporte desinteressadamente, dispensando às oposições o papel de "café com leite" que elas certamente não devotam ao mesmo "chefe de Estado" quando lhe tratam como "chefe de governo".

Todavia, a exacerbação retórica não merece sobrestimação. Ela aconteceu de lado a lado neste ano e é um subproduto natural de disputas nas quais não apenas as paixões afloram, mas a prestidigitação verbal se presta bem ao convencimento dos incautos. Porém, cabe aos analistas desmistificar este tipo de exagero e procurar tratar os fatos com maior isenção. Outro exemplo interessante destes duelos retóricos foi a reação à afirmação do presidente-em-campanha de que há jornais e revistas que se comportam como partidos políticos. Rapidamente alguns apontaram nesta afirmação uma ameaça à liberdade de imprensa.

Ora, afirmar que certos veículos atuam de forma partidária (ou tendenciosa) é apenas reconhecer um fato - no meu entender, verdadeiro. Não só não há nisto qualquer intimidação da mídia (como efetivamente fazem Cristina Kirchner ou Hugo Chávez), mas se trata do livre exercício de crítica. Reconheça-se, entretanto, que alguns desses jornais-partidos não são opositores, mas apoiam a atual situação, assim como o assim chamado "Partido da Imprensa Golpista" (PIG) não é golpista, apenas tendencioso.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

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