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sábado, 16 de outubro de 2010

O 2º turno tende a repetir o 1º (por Alberto Carlos de Almeida)

Sou torcedor do Fluminense. Faltando dez rodadas para o fim do campeonato brasileiro de 2009, o meu time tinha 99% de chances de ser rebaixado. O Fluminense escapou do rebaixamento da seguinte maneira: na última rodada, por um ponto, em um jogo em que empatou com o Coritiba (que acabou rebaixado). Se o Coritiba marcasse um gol venceria e o Flu seria rebaixado. Além disso, para sair dos 99% de chances de ser rebaixado, o Fluminense precisou ganhar praticamente todos os jogos que teve pela frente.

O fato de o Fluminense ter escapado do rebaixamento mesmo tendo 99% de chances de ter sido rebaixado não significa que a probabilidade de 99% estivesse errada. O Fluminense se enquadrou no improvável 1% de chance. Qualquer indivíduo normal, não iluminado, sem brilhantismo, de posse da probabilidade de 99% afirmaria que o Fluminense seria rebaixado. Quando se lança mão de procedimentos científicos (e, nesse caso, da estatística) a previsão, aquela afirmativa que diz que uma determinada coisa vai acontecer, fica sempre do lado da maior probabilidade. No ano passado, dez rodadas antes de o Brasileirão acabar, afirmar que o Flu seria rebaixado é idêntico a afirmar que havia 99% de chances de rebaixamento.

Afirmar que Dilma Rousseff derrotará José Serra no segundo turno é equivalente a afirmar que as chances de ela vencer são muito elevadas, da ordem de 90 a 95%. As probabilidades não estarão erradas, nem a previsão, se Serra vencer. Terá ocorrido o mais improvável, os tucanos terão aproveitado os 5 a 10% de chances que tinham e têm de derrotar a candidata do governo.

O fato de a eleição ter ido para o segundo turno não altera a probabilidade inicial de vitória de Dilma. A probabilidade de que um acontecimento caminhe em uma determinada direção não deve ser confundida com a intensidade desse acontecimento. As chances de vitória de Dilma não se alteraram, ainda que essa vitória possa ser de 51 ante 49% de votos válidos agora no segundo turno. É importante dizer isso porque nos últimos dias está ocorrendo uma confusão entre chance de resultado com intensidade do resultado. Para esclarecer isso basta um exemplo simples. Muitas vezes é fácil prever que o Banco Central vai aumentar os juros, o que muitas vezes é difícil fazer é prever qual será o tamanho do aumento dos juros. A direção do acontecimento é previsível, a intensidade dele, nem tanto. Repito, isso se aplica à provável vitória de Dilma.

O balanço dos resultados do primeiro turno, por exemplo, indica favoritismo de Dilma: o PT conquistou a maioria na Câmara dos Deputados; o PT conquistou o maior número de deputados estaduais em todo o Brasil; o PT foi o partido que mais aumentou o número de senadores; o PSDB manteve dois governos que havia conquistado há quatro anos: São Paulo e Minas. Trocou o RS pelo PR. O PSDB verá o retorno de dois ex-governadores de sucesso: Marconi Perillo, em Goiás, e Simão Jatene, no Pará. Ambos se enquadram na seguinte lógica: foram sucedidos por governadores que fizeram uma gestão muito ruim e estão sendo chamados de volta pelo eleitorado para retomar as suas gestões.

Isso nada tem a ver com a eleição nacional. O PT aumentou a quantidade e importância dos governos estaduais sob o seu controle. Tem agora o RS e manteve BA, SE e AC. Tende a ganhar o DF, que entraria na conta dos governos importantes. Isso também não tem nada a ver com a eleição nacional. Em razão dos três primeiros itens acima, por maior que seja o viés de qualquer análise é inegável que o PT tenha sido o grande vencedor do primeiro turno.

Comparativamente, a agenda propositiva de Serra tem menos aspectos relevantes do que a de Dilma. Dilma defende a continuidade do que vem dando certo. A campanha de Serra é pior do que a campanha de Dilma em alguns aspectos relevantes: a quantidade de apoios regionais de Serra é menor do que a de Dilma; Serra não tem Lula ao lado dele, Dilma tem; a avaliação do governo está ao lado de Dilma e não de Serra; Serra não tem um discurso de campanha coerente, o que Serra defende? Dilma tem duas coisas: a continuidade de um governo bem avaliado e a ascensão dos pobres à classe média. Elenquem-se outros elementos relevantes e em praticamente todos Dilma leva vantagem, com exceção do apoio da mídia.

Apesar disso tudo, Serra poderá vencer as eleições. Caso isso aconteça, será a vitória do aleatório. Será um dos maiores "cases" mundiais de resultado na direção contrária ao previsto por qualquer teoria de comportamento eleitoral. Ainda assim, repito, isso pode ocorrer. Note-se que Serra não leva vantagem sobre Dilma nem no conteúdo nem na forma. Ele só chegou ao segundo turno por causa de Marina Silva e de uma campanha negativa: as denúncias contra Erenice Guerra e talvez a temática do aborto (creio que o aborto não tenha influenciado muito, trata-se de mais um mito, não há provas concretas disso, talvez tenha tirado de 0,5 a 1 pontos percentuais de votos de Dilma).

A questão é que racionalmente não é possível fazer o ponto de que Serra tem mais chances de que Dilma ou ainda de que as chances de Serra tenham aumentado. Aliás, atualmente, afirmar que Serra tem mais chances do que Dilma é uma afirmação mais resultado de torcida do que de análise.

Vale aqui retomar o tema do primeiro turno, quando fiz a previsão de que Dilma venceria com uma margem de 15 a 20 pontos de vantagem. Dilma abriu uma vantagem de 14 pontos percentuais, 1 abaixo da previsão. O que estava fora do modelo de previsão foi o caso Erenice e o crescimento de Marina em cima dos votos de Dilma. De acordo com minha análise, Marina se enquadrava no rol de candidatos de primeira eleição, com pouco tempo de TV e reduzido apoio político. Ciro Gomes foi isso em 1998 e teve pouco menos de 12% de votos válidos; Garotinho teve 17% em 2002. Garotinho era o ex-governador bem avaliado do terceiro maior colégio eleitoral do Brasil.

É um equívoco cobrar dos analistas a previsão de crescimento de Marina até praticamente 20% de votos válidos. Não havia base científica para essa previsão, portanto, se alguém a fez talvez esse alguém tenha sido um palpiteiro, uma cartomante ou um especialista em cartas de tarô.

A eleição, portanto, não foi para o segundo turno porque a campanha eleitoral de Dilma tenha cometido erros ou porque Serra tenha acertado. A propósito, a julgar pelo início da propaganda na TV de Dilma, pode ser que o seu comando de campanha tenha feito a avaliação equivocada de que eles erraram no primeiro turno e por isso precisam mudar a estratégia. Não houve erro e, por isso, a estratégia correta para vencer agora é a mesma utilizada no primeiro turno. O motivo disso é simples: a candidatura do governo, em razão da enorme avaliação positiva de Lula, tem mais credibilidade do que a oposição para prometer mais melhorias concretas para os brasileiros nos próximos quatro anos. Se isso for feito na campanha de Dilma, ela mantém elevadas suas chances de vitória.

É preciso ignorar o que falou Mônica Serra, algo de que talvez menos de 1% do eleitorado tenha tomado conhecimento, e falar sobre o que atinge todo o eleitorado: consumo, emprego, geração de renda, crédito pessoal, acesso a bens como automóveis, viagens aéreas, casa e coisas desse tipo.

O primeiro mandato de Lula fez com que o PT conquistasse por definitivo o voto dos pobres graças à ênfase no Bolsa Família e afastou, também em definitivo, segmentos importantes da classe média por causa do mensalão. Os mapas eleitorais do primeiro turno em 2006 e em 2010 são idênticos. A candidatura do PT vence onde há mais pessoas de baixa renda e a candidatura do PSDB onde há menos pessoas de baixa renda. Essa divisão eleitoral do mapa do Brasil veio para ficar. Partidos social-democratas e de esquerda, como o PT, têm esse perfil de votação em qualquer lugar do mundo. Partidos de oposição ao partido de esquerda, o que é o caso do PSDB, também têm o mesmo perfil de votação.

A regularidade é tão grande que se expressa em resultados aparentemente surpreendentes. Dilma venceu praticamente em toda a Bahia e em todo o Piauí. Lula também teve desempenho idêntico em 2006. Também ambos foram derrotados pelo candidato do PSDB em Vitória da Conquista (BA) e em Uruçuí (PI). Esse é mais um indicador da regularidade do voto no Brasil.

É justamente essa regularidade que cria uma oportunidade única para o PSDB: tornar-se o grande partido de centro-direita do país. Assumir-se como centro-direita não levará o partido a ser abandonado pelos eleitores de Vitória da Conquista, de Uruçuí, nem do Estado de São Paulo, da Região Sul e do corredor do agronegócio do Centro-Oeste. A maior parte dos eleitores dessas regiões quer ver-se representada por um partido que não tenha receio de defender o mercado, as privatizações e a redução da tutela estatal sobre os indivíduos.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: menos Imposto, mais Consumo".

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Fátima Pacheco Jordão comenta 2º turno


Valor: Como fica o apoio da Marina no segundo turno?

Fátima: O PV vai fazer alianças e, provavelmente, vai apoiar o Serra. Mas a Marina deve ficar distante desses acordos. Assim como Lula, Marina tem prerrogativas. Nessas eleições, ganhou autonomia. Conseguiu redesenhar o PV e a questão ambiental. No fim das contas, é a pessoa que levou o Serra ao segundo turno. O PV pós-Marina é outro. Pesquisas mostram que 50% votam em Serra, 30%, em Dilma e 20% não sabem. Com a possível adesão do PV ao Serra e o compromisso com a questão ambiental, 65% votariam em Serra e 35% em Dilma.

Valor: O PMDB ganha força no segundo turno?

Fátima: Sem dúvida. A capacidade do PMDB é ligada ao constante rearranjo dessa federação. O PMDB é a mais camaleônica das forças políticas brasileiras. Tem força na medida em que, uma vez superadas todas as disputas regionais, pode se apresentar como única perspectiva de força frente ao governo Dilma, do qual Michel Temer é vice. Se não houvesse segundo turno, PMDB e Dilma se enfraqueceriam. Isso porque, ao ganhar no primeiro turno, a situação política de Dilma seria mais precária.

Valor: Como assim?

Fátima: Dilma tem aliança ampla e o PMDB é forte. Tenho viés do eleitorado, pois sou socióloga, não cientista política. Ganhando no primeiro turno, parodoxalmente, Dilma se enfraqueceria do ponto de vista do eleitor, já que as rearticulações seriam de bastidores. O eleitorado não veria e se decepcionaria rapidamente, diminuindo a capacidade de liderança de Dilma. Com isso, ela entraria na faixa de eleitos sem autonomia. No segundo turno, as alianças, tanto da situação como da oposição, terão de ser feitas à luz do eleitor. O resultado será uma posição mais consolidada de quem ganhar no dia 31. É um dado novo nas eleições, já que o segundo turno não enfraquece o favorito. Para o eleitor, está clara a relação Dilma-Lula, mas não está evidente a relação Dilma-vice.

Valor: Como o eleitor calcula o benefício das políticas econômicas e a questão ética?

Fátima: O eleitor privilegia vantagens objetivas que venha a ter com esse ou aquele candidato. Mas aceitar que a Dilma é a continuidade de Lula não é automático. O eleitor checa a capacidade do indicado ser portador desse bem maior que é a continuidade. As denúncias não afetaram a confiança do eleitor na ética no sentido da corrupção, mas no sentido da ética em relação ao compromisso.

Valor: Segundo turno zera tudo?

Fátima: Não acredito nisso. Acho que há um caleidoscópio que muda de posição e as pecinhas se acomodam em outro padrão.

Valor: Qual deve ser a estratégia de José Serra (PSDB) agora? Mudar o discurso e usar a imagem de FHC?

Fátima: Se começasse como favorito, o que não acontece, Serra deveria manter o isolamento verificado até agora. Mas sai perdendo, considerando a simulação de segundo turno. Serra tem não só de abrigar FHC, como todas as forças de apoio, passando por Aécio Neves (PSDB-MG), pelas feministas, pelos ambientalistas que poderão advir do PV e pelo movimento negro. Sua posição é difícil. Como fez uma campanha muito estreita do ponto de vista político, reorganizá-la é fundamental. Mesmo perdendo, poderá liderar um processo de rearticulação, de renovação temática. Nessa eleição, houve um crédito para a continuidade, mas ela mostra que a sociedade não quer só isso. Nisso, a estratégia de Serra, de não bater em Lula, estava certa. Só que, no conteúdo, ele focou na coisa de ter mais ou menos unidades de saúde. Ele não tratou de Fernando Henrique como um governo que é responsável por boa parte do bom desempenho do governo.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

O presidente da República e a campanha eleitoral (por Cláuidio Gonçalves Couto)


Nunca antes na história democrática deste país um presidente da República empenhou-se tanto na campanha de seu sucessor. E as razões para isto são duas: nunca um presidente teve, combinadamente, tantos motivos e tantas condições para fazê-lo.

Três períodos de nossa história republicana não podem ser considerados nesta apreciação. A Primeira República (1889-1930), porque não contávamos naquele momento com um regime político competitivo - fosse liberal ou democrático -, de modo que a atuação dos presidentes e governadores restringia-se a conservar o jogo oligárquico de exclusão sistemática do acesso ao poder pelos opositores. A Era Vargas (1930-1945), já que se tratava de um regime autoritário unipessoal, durante o qual não ocorreram disputas presidenciais ou para governador. E o Autoritarismo Militar (1964-1985), já que também não permitia a competição pelo poder Executivo nacional e mesmo estadual (entre 1966 e 1982). Restam, portanto, dois períodos que se pode propriamente denominar como "democráticos": a assim chamada democracia "populista" (1945-1964), inaugurada após a deposição de Getúlio Vargas, e o atual regime em que vivemos, iniciado com o governo civil da Nova República (1985-1990).

Na eleição de 1945, em que Eurico Gaspar Dutra foi eleito presidente, Vargas não tinha como nem porque se empenhar na eleição do sucessor, já que era um ditador deposto e via ascender como candidato presidencial de um dos partidos que criou (o PSD) alguém tido por ele como um traidor - já que envolvido em sua deposição.

Já Vargas, quando eleito em 1950 pelo PTB, não contou com o apoio de Dutra - aliás, nem precisava, por se tratar de uma liderança incomensuravelmente maior que o então presidente -, ao passo que o candidato oficial do PSD, Cristiano Machado, foi abandonado por seus correligionários, originando o termo "cristianização".

Vargas se suicidou e nenhum de seus substitutos, Café Filho e Carlos Luz, tinha qualquer interesse em se empenhar na eleição de Juscelino Kubitschek - já que ambos conspiraram contra ele e contra a própria democracia. JK, por sua vez, pouco se mexeu para eleger o marechal Henrique Lott, pois já mirava nas eleições de 1965. O então presidente sabia que seu sucessor herdaria uma situação economicamente dificílima, sendo grande o potencial para o desgaste, de modo que não era desinteressante a vitória oposicionista naquele momento, como de fato ocorreu.

O inesperado é que o presidente eleito, apoiado pela UDN, Jânio Quadros, renunciaria pouco tempo depois, lançando o país numa crise da qual também não escapou o substituto, João Goulart, tragado pelo golpe militar que pôs fim a disputas sucessórias.

No retorno ao regime civil, em 1985, o presidente João Baptista Figueiredo não se empenhou na eleição de nenhum dos candidatos no colégio eleitoral, já que um era da oposição (Tancredo Neves) e o outro um desafeto dentro de seu partido (Paulo Maluf). José Sarney terminou de forma tão desastrosa seu mandato que não tinha como apoiar qualquer um dos dois candidatos oriundos da Aliança Democrática (Aureliano Chaves ou Ulysses Guimarães), os quais amargaram resultados vexatórios em 1989.

Fernando Collor renunciou para fugir ao impeachment e Itamar Franco, embora tenha terminado o governo gozando de popularidade, era menos importante para a eleição de Fernando Henrique Cardoso do que ele próprio - que auferia os méritos de ter concebido o Plano Real. Após ser reeleito, FHC foi evitado por José Serra na campanha de 2002, pois a impopularidade do presidente tucano àquele momento tornava o seu apoio pouco proveitoso.

Finalmente, é Lula quem termina seu segundo governo fruindo de uma avassaladora popularidade, numa situação econômica sob controle e contando com uma candidata de sua confiança e até então desconhecida da maior parte do eleitorado. Portanto, pela primeira vez na história estiveram presentes tanto os motivos como as condições para que um presidente brasileiro se envolvesse de corpo e alma na disputa sucessória.

Deste modo, embora surpreenda o envolvimento inaudito do presidente na campanha, ele se explica pela situação historicamente inusitada da atual eleição. O que não faz qualquer sentido é esperar do atual chefe do Poder Executivo um comportamento de Rainha da Inglaterra. Em primeiro lugar, porque não estamos num regime parlamentarista - muito menos de tipo monárquico - no qual existiria uma nítida separação entre as chefias de Estado e governo. No presidencialismo, o chefe do Executivo é, simultaneamente, chefe de Estado e de governo. E, como chefe de governo, é necessariamente o chefe de um partido (ou, ao menos, de uma coalizão).

Portanto, é natural que (podendo e querendo) o presidente da República se empenhe na eleição do sucessor. Em segundo lugar, um presidente, ao ser chefe de governo e de um partido, recebe da oposição um tratamento hostil que nada tem de anormal, mas que certamente não seria dispensado à chefe de Estado pela oposição de Sua Majestade. Isto só é possível em monarquias ou mesmo em repúblicas parlamentaristas - nas quais o presidente não é partidário.

Chamo a atenção para isto porque, no cenário de polarização retórica exacerbada que se erigiu nesta eleição, houve espaço até mesmo para exigir do presidente da República que fingisse ser a Rainha da Inglaterra. Por exemplo, no especioso "Manifesto em Defesa da Democracia" foi afirmado que "é constrangedor que o Presidente não entenda que o seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas vinte e quatro horas do dia. Não há 'depois do expediente' para um Chefe de Estado". Ora, tal afirmação não tem o menor cabimento, pois exige de um dos contendores eleitorais que se comporte desinteressadamente, dispensando às oposições o papel de "café com leite" que elas certamente não devotam ao mesmo "chefe de Estado" quando lhe tratam como "chefe de governo".

Todavia, a exacerbação retórica não merece sobrestimação. Ela aconteceu de lado a lado neste ano e é um subproduto natural de disputas nas quais não apenas as paixões afloram, mas a prestidigitação verbal se presta bem ao convencimento dos incautos. Porém, cabe aos analistas desmistificar este tipo de exagero e procurar tratar os fatos com maior isenção. Outro exemplo interessante destes duelos retóricos foi a reação à afirmação do presidente-em-campanha de que há jornais e revistas que se comportam como partidos políticos. Rapidamente alguns apontaram nesta afirmação uma ameaça à liberdade de imprensa.

Ora, afirmar que certos veículos atuam de forma partidária (ou tendenciosa) é apenas reconhecer um fato - no meu entender, verdadeiro. Não só não há nisto qualquer intimidação da mídia (como efetivamente fazem Cristina Kirchner ou Hugo Chávez), mas se trata do livre exercício de crítica. Reconheça-se, entretanto, que alguns desses jornais-partidos não são opositores, mas apoiam a atual situação, assim como o assim chamado "Partido da Imprensa Golpista" (PIG) não é golpista, apenas tendencioso.

Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV-SP

domingo, 3 de outubro de 2010

O elogio ao óbvio ululante (por Alberto Carlos Almeida)


As grandes verdades tendem a ser bastante simples. Na economia há a lei da oferta e da procura. Quando o preço de um produto ou serviço é muito elevado, a quantidade procurada é bem pequena. Baixe-se o preço do produto e a procura aumenta. A lei da gravidade em suas duas versões, newtoniana e de Einstein, explica uma enorme quantidade de movimentos baseada em um esquema analítico simples. A teoria da evolução de Darwin também é assim, poucas variáveis explicam a grande diversidade de plantas, animais e espécies.

Na opinião pública há também essas verdades simples. Uma delas é a que afirma que os eleitores que aprovam um governo tendem a votar no candidato do governo. Alguns criticam essa afirmação. César Maia é um deles, dizendo que se trata de uma obviedade. Não é obviedade, é simplicidade mesmo. Eu diria que as verdades simples deixam apavoradas as pessoas que se acham geniais e brilhantes. O seu suposto brilhantismo não tolera explicações simplórias. Porém, acreditar na contradição entre genialidade e simplicidade é um erro crasso. Eis que nada é mais simples do que a teoria da evoluçãoDarwin, justamente o que fez dele um cientista genial.

César Maia defendeu, durante todo o ano de 2009 e no início de 2010, o argumento complexo e mirabolante de que Lula não seria capaz de transferir votos para Dilma. Vale aqui citar alguns trechos do ex-blog de César Maia, de abril de 2010, que ilustra bem a análise que ele assina acerca da incapacidade de transferência de votos de Lula para Dilma: "Em fevereiro do 2009 fiz uma análise do personagem Dilma Rousseff lembrando que a transferência de votos entre políticos de personagens diferentes é muito difícil. No caso de Lula e Dilma, trata-se de personagens antípodas. Aliás, o personagem Dilma - séria, tecnocrática, vertical, inflexível - foi criado pelo próprio Lula pós-mensalão. Lula, do ponto de vista da psicologia social, é um personagem feminino, próximo, amigo, acarinhável, vitimizável. Dilma é um personagem, do ponto de vista da psicologia social, masculino, distante, vertical. Talvez Patrus fosse um personagem com perfil mais próximo a Lula. Agora é tarde, Inês é morta".

Ler esse texto hoje, quando Dilma ostenta uma vantagem sobre Serra de praticamente 30 pontos percentuais nos votos válidos, podendo até mesmo ganhar no primeiro turno, trata-se de um exercício próximo de patético. O seu autor certamente achava que estava elaborando um raciocínio superinteligente, brilhante, genial. A realidade foi mais dura e simples. O eleitorado que avalia o governo como ótimo ou bom, ao tomar conhecimento de que Dilma era a candidata governista, decidiu passar a votar nela. Esse processo de aumento de conhecimento do candidato governista se acelerou e se massificou com o início o horário eleitoral gratuito. Todas as elucubrações supostamente brilhantes foram massacradas pela realidade, foram atropeladas por um rolo compressor denominado conversão de avaliação positiva do governo em votos para o candidato governista.

César Maia, em todo o período eleitoral, apelou para termos e metáforas impressionantes tais como: luta de espadachins, jogo de xadrez, jogo go e também "jogo de coordenação", segundo ele mesmo uma expressão que significa processo de distribuição de informações e de troca de opiniões entre as pessoas até que a intenção de voto se transforme em decisão de voto. Tantas metáforas, tantos termos não usuais para nada. O que realmente aconteceu é que à medida que o eleitorado tomou conhecimento de que Dilma era a candidata do governo ele passou a votar em Dilma. Como a maioria aprova o governo, a maioria decidiu, no decorrer do último ano, abandonar o Serra e passar a votar em Dilma.

Os dados mostram que em janeiro de 2009, em segundo turno, Serra tinha 63% de votos de quem avaliava Lula como ótimo e bom. Essa proporção veio caindo desde então, atingiu 43% em maio de 2009, ficou estabilizado daí até dezembro, período no qual Dilma se retirou para tratar do câncer, e continuou caindo em seguida para 31% em maio de 2010 e somente 21% em agosto. Dilma conheceu trajetória oposta à de Serra. Em janeiro de 2009 ela tinha somente 15% de quem avaliava o governo Lula como sendo ótimo ou bom. Ela subiu para 39% em maio de 2009, ficou estabilizada em quase 50% no primeiro semestre de 2010 e subiu de forma espetacular depois que começou a propaganda na TV convertendo em votos 70% do ótimo e bom de Lula. Óbvio e ululante.

Não é de hoje que essa regra simples rege a política e a opinião pública brasileira. Em 1996 os bem avaliados César Maia e Paulo Maluf elegeram seus candidatos para sucedê-los no Rio e em São Paulo, respectivamente Conde e Celso Pitta. Marconi Perillo governou Goiás por oito anos. Foi eleito a primeira vez em 1998 e foi reeleito em 2002. Como não podia disputar uma nova reeleição em 2006, ele indicou, apoiou e fez campanha para Alcides Rodrigues, que acabou vencendo. Perillo estava muito bem avaliado ao final de seu período de oito anos. Verdade simples: o eleitor de Goiás votou no candidato do governo bem avaliado.

Com uma antecedência de quatro anos o mesmo aconteceu no Pará. Almir Gabriel foi eleito duas vezes consecutivas, em 1994 e 1998. Em 2002 ele indicou Simão Jatene para sucedê-lo. Mais uma vez o governo bem avaliado foi capaz de fazer o seu candidato vencer. Ninguém hoje sabe dizer se Perillo era um personagem próximo, amigo e feminino, ou se Alcides era vertical, distante e inflexível. O que se sabe é que Perillo tinha em 2006 um governo bem avaliado e o seu candidato era Alcides Rodrigues, isso é suficientemente simples para entender o desfecho daquela eleição.

Pela mesma regra é possível fazer algumas previsões para 2010: o bem avaliado Aécio Neves tenderá a eleger Antônio Anastasia para o governo de Minas, o bem avaliado Blairo Maggi fará o mesmo no Mato Grosso com seu candidato, Silval Barbosa. Com pouco, avaliação de governo, explica-se muito: a maioria das vitórias e derrotas.

O erro de César Maia encontra paralelo no erro de Carlos Augusto Montenegro, diretor do Ibope, ao afirmar de maneira categórica em agosto de 2009 que Lula não faria seu sucessor. Naquele mês Serra liderava com folga as pesquisas de intenção de voto. Nesse caso, Montenegro disse com certeza que Serra venceria e Dilma perderia. Dez meses mais tarde, no começo de junho de 2010, o mesmo Montenegro afirmou que tanto Serra quanto Dilma poderiam vencer a eleição, e que isso aconteceria no primeiro turno. Poucos dias antes dessa declaração no evento do Grupo de Líderes Empresariais (Lide) fora publicada uma pesquisa do Ibope na qual Serra e Dilma estavam empatados com 37% cada um. Mais uma vez a declaração de Montenegro repetiu o dado da intenção de voto. Agora com o agravante de que a vitória ou de um ou de outro seria no primeiro turno.

Como Marina tinha 8% das intenções de voto, ele estava dizendo que qualquer um iria abrir uma vantagem de mais de 8 pontos percentuais sobre o outro. É como se o serviço de meteorologia dissesse que amanhã poderá fazer mais ou menos 10° C, dependendo para que lado sopre o vento. Tempos depois, quando Dilma abriu uma larga margem sobre Serra, a previsão de Montenegro se tornou "vitória de Dilma no primeiro turno". Mais uma vez a previsão apenas refletiu o resultado da pesquisa.

O erro mais grave de Montenegro, porém, diz respeito ao PT. Na mesma entrevista de agosto de 2009, o renomado analista afirmou o seguinte: "O mensalão acabou [com] todo o apelo que o PT havia acumulado em sua história. Ali acabou o diferencial. Ali acabou o charme. Todas as suas lideranças foram destruídas. Estrelas como José Dirceu, Luiz Gushiken e Antônio Palocci se apagaram. Eu não diria que o partido está extinto, mas está caminhando para isso". O PT sairá das urnas mais forte do que nunca. Elegerá o presidente e provavelmente a maior bancada de deputados federais, aumentará de maneira expressiva o número de seus senadores e entre manter e conquistar ficará, talvez, com cinco governos estaduais, dentre os quais Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal. Outro erro crasso de Montenegro.

O erro maior não advém da análise equivocada das pesquisas, mas da ignorância acerca da história: o PT é um típico partido social-democrata europeu. Assim, ele veio para ficar, com ou sem mensalão. O PT nasceu radical e obrista e foi se moderando à medida que foi crescendo. Essa trajetória é idêntica ao SPD alemão fundado em 1875, ao Partido Socialista Operário Espanhol fundado em 1879, ao Partido Trabalhista britânico fundado em 1898 e também aos socialistas franceses e ex-comunistas italianos. O PT tem pouco mais de 30 anos de existência. Caminha, obviamente, para ser tão longevo quanto o SPD, o PSOE ou o Labour Party.

César Maia provavelmente continuará sem mandato. Não conseguirá nem mesmo ser eleito para a segunda vaga de senador pelo Rio. Esse resultado seria difícil de prever tomando-se o estilo analítico do próprio César Maia, recorrendo-se a coisas como jogo de coordenação ou luta de espadachins. Porém, analisando-se a avaliação dele ao sair da prefeitura do Rio em 2008, somente 23% de ótimo e bom, seria fácil prever o atual desfecho da eleição para o Senado. O povo do Rio não lhe premiaria com o Senado em razão do péssimo desempenho que teve no seu último mandato de prefeito.

Alberto Carlos Almeida, sociólogo e professor universitário, é autor de "A Cabeça do Brasileiro" e "O Dedo na Ferida: menos Imposto, mais Consumo".

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Sinais de fumaça e planos para segunda-feira, por Raymundo Costa do "Valor Econômico"


Enquanto a campanha de Dilma Rousseff (PT) já dispõe de um roteiro para seguir a partir de segunda-feira, no PSDB a visão do dia seguinte às eleições oscila entre o racional e a fé. Analisando as pesquisas, os tucanos julgam ver sinais de que a decisão pode ficar para o segundo turno, hipótese em que alguns fatores poderiam se tornar mais favoráveis a José Serra que atualmente e quem sabe levá-lo a reverter, numa disputa polarizada, o atual favoritismo da candidata petista.

Ao contrário do que se costumava dizer em eleições passadas, o PSDB agora não acha que o segundo turno é uma nova eleição. Nada disso. É a continuação do primeiro. Seria, portanto, a comprovação do acerto da estratégia seguida até agora. Estratégia essa que é reprovada pelos políticos e sustentada pelo pessoal do marketing. O que mudaria para Serra seria a expectativa de arrecadação, que no momento justifica uma campanha acanhada e de pouca visibilidade nas ruas, e a possibilidade do debate direto com Dilma e tempos iguais na propaganda de rádio e televisão.

Os tucanos ficaram bem impressionados com o desempenho de José Serra no debate do último domingo, na TV Record. Se não houve um vencedor declarado, pelo menos desta vez, atacado pelos demais, ele teve a oportunidade de falar mais detalhadamente sobre sua biografia política, o que já fez e o que pretende fazer na vida pública. Isso reforçou no PSDB a crença da superioridade presumida de Serra sobre Dilma nos debates, como afirmavam os tucanos quando seu candidato ainda ocupava o primeiro lugar nas pesquisas.

O debate da Record, ainda entre os tucanos, também foi considerado positivo para Serra porque Dilma teve de falar sobre corrupção durante boa parte de suas intervenções. Respondendo a Marina Silva (PV) e Plínio de Arruda Sampaio (PSOL). Serra não iria fazer perguntas a Dilma, mas devido as regras do debate teve de questionar obrigatoriamente a candidata do PT. Uma vez. A pergunta que tinha preparado era justamente sobre as denúncias de tráfico de influência na Casa Civil, mas o assunto já fora abordado antes e o tucano preferiu falar sobre outro de seus temas preferidos, as agências reguladoras.

Esses são alguns dos sinais que os tucanos veem indicando fogo ou querem ver nos astros, nem tão distraídos quanto posam. Mas também é fato que há fumaça nas pesquisas. Sondagens de candidatos feitas ontem em Salvador (BA), uma espécie de capital do lulismo do Nordeste, registraram que Marina pode alcançar os 25% dos votos da capital baiana, já bem à frente de Serra - mas a soma dos dois ainda não basta para superar Dilma. O significativo é o provável bom desempenho da candidata verde numa capital lulista por excelência.

Há sinais favoráveis ao PSDB e ao PV no Sul e no Norte, a petista continua bem na região Centro-Oeste e o Nordeste se mantém como a grande fortaleza petista, apesar do registro também de uma pequena oscilação negativa da candidata. Mas o mapa político que começa a ser desenhado é o de um Brasil mais multifacetado, diferente da divisão bicolor de 2006, quando o Sul e o Sudeste, na eleição presidencial, foram coloridos de azul e a outra banda do pais, de vermelho.

No campanha de Dilma e no Palácio do Planalto as oscilações são acompanhadas também com atenção. Ninguém esquece o que ocorreu na campanha da reeleição de Lula, em 2006 - as projeções, com base nas pesquisas, indicavam uma vitória de Lula, no primeiro turno, com uma diferença de praticamente 14 milhões de votos. Abertas as urnas, ela foi de cerca de 6,7 milhões de votos, mais ou menos a metade do que estava previsto. O presidente teve de disputar um segundo turno.

Ganhou fácil, assim como ganhou de José Serra na eleição de 2002. A rigor, a campanha de Dilma Rousseff avalia que a oscilação ocorre dentro da margem de erro, e que no segmento formado por eleitores que ganham até dois salários mínimos (o forte da candidata) não ocorreu mudança alguma. Todo o cuidado é para levar a campanha até domingo sem erros. O crescimento de Marina Silva é acompanhado, mas não é visto como um risco à vitória de Dilma Rousseff. Ela já poderia se considerar a primeira mulher presidente (ou presidenta, como diz a própria candidata) da República Federativa do Brasil.

Na realidade, até os próximos passos de Dilma, a partir do dia 3, já estão sendo planejados pelo comitê eleitoral da candidata. De saída, ela pretende descansar alguns dias. A reta final da campanha tem sido cansativa para a ex-ministra de Lula, como era visível no debate da Record, no domingo.

Descansada, a candidata deve participar do segundo turno das eleições nos Estados, para apoiar candidatos do PT e de partidos aliados que ainda estiverem na disputa. Uma lista a ser selecionada a dedo, depois de apurados os votos para governador.

Os petistas consideram que a transição de governo pode ser feita com mais calma, uma vez que se tratará da montagem de um governo de continuidade. Além disso, já existe um grupo trabalhando para a transição, independentemente de quem for o candidato vencedor no domingo. Ou seja, haveria mais tempo para Dilma pensar na escalação do ministério com menos atropelos do que o presidente Lula teve em 2002.

Na época, como se recorda, o PMDB chegou a ser convidado a participar do governo; ficou de fora à última hora. Hoje, o PMDB faz parte da chapa vencedora, tem o candidato a vice-presidente da República e terá peças importantes no próximo governo, se Dilma efetivamente for eleita. Talvez não tão importantes quanto imagina, porque antes mesmo de ganhar a eleição o PT já discute se os pemedebistas devem permanecer com os mesmos ministérios que detêm atualmente.

Raymundo Costa é repórter especial de Política, em Brasília.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Peripécias do Câmbio Valorizado (Luiz Gonzaga Belluzo)


O real se valoriza sobranceiro diante do dólar e de outras moedas. A moeda americana dobra os joelhos diante da moeda brasileira sob o peso das injeções de liquidez inoculadas pelo Federal Reserve e, escoltada pela prodigalidade dos déficits fiscais engendrados pelo Tesouro americano. Inquietos com os minguados "yields" de Tio Sam e desaçaimados em sua incessante busca de rendimentos, os gestores de portfólios globais, entre crispações e redemoinhos, cuidam de rearranjar suas carteiras. Encontram farto repasto na apetitosa arbitragem com o coupon cambial administrado pelos senhores da finança nativa.

Num ritual farsesco, renova-se, em sua caducidade tediosa, a discussão sobre a efetividade (ou inefetividade) das intervenções do Banco Central no mercado de câmbio. A controvérsia sobre o câmbio, tão acerba quanto monótona, termina indefectivelmente com a vitória da turma da bufunfa, aqueles que se refestelam na arbitragem financeira e engordam seus cabedais sob o patrocínio das vacilações, medos e inconsistências do governo. Com essas e outras, as exportação de manufaturados se debilita rapidamente e as importações predatórias inundam o mercado brasileiro. É primário argumentar que os críticos do câmbio são favoráveis ao "fechamento" da economia e buscam comprometer sua eficiência com a redução das importações, indispensáveis, sim, para sustentar um crescimento saudável com baixa inflação.

Neste momento a história é outra: a decadência das exportações vai dos têxteis aos calçados, dos automóveis aos ônibus da internacionalizada Marco Polo, para finalmente culminar na degradação das vendas externas de máquinas e equipamentos da nossa indústria de bens de capital. A derrocada exportadora faz parceria com a invasão das importações de produtos manufaturados, prenhes de incentivos e subsídios oferecidos generosamente por chineses e outros competidores espertos.

Os chineses sofreram de forma aguda os efeitos da desaceleração global. Mas graças a estratégias eficazes, não só crescem acima da média mundial, como ainda sustentam alentados superávits comerciais, fomentados por políticas tributárias e creditícias agressivas de estímulo às exportações. Desde janeiro de 2009, o governo chinês ampliou os "tax rebates" para mais de 500 produtos manufaturados. O yuan praticamente não se moveu nos últimos doze meses, protegido pelas intervenções do Peoples Bank of China que não só compra agressivamente divisas como interfere duramente nas posições compradas e vendidas em moeda estrangeira dos bancos chineses.

Eles colhem altas taxas de investimento na indústria e na infraestrutura e rápida escalada no gradiente do horizonte tecnológico. No caso da China, a política de defesa do yuan e a oferta ilimitada de mão de obra barata se juntam para esfolar o que resta das indústrias intensivas em mão de obra nos concorrentes incautos e desavisados da periferia.

A controvérsia sobre o câmbio, tão acerba quanto monótona, termina com a vitória da turma da bufunfa
Já observei em outra ocasião que, na China, o aumento da participação das exportações de manufaturas foi acompanhado por um aumento correspondente na geração do valor agregado manufatureiro mundial Isso tem uma implicação importante: o valor das exportações se elevou com a maior integração da economia ao comércio internacional e induziu o crescimento da renda interna. Neste caso, pode-se concluir que houve um "adensamento" das cadeias manufatureiras domésticas que permitiram a apropriação do aumento das exportações pelo circuito doméstico de geração de renda e de emprego.

Na América Latina, inclusive no México a história foi outra. O México diferentemente do Brasil e da Argentina, aumentou bastante sua participação relativa nas exportações mundiais. Mas, caiu a sua parte na formação do valor agregado manufatureiro global exprimindo a desarticulação das cadeias produtivas depois da assinatura do Tratado de Livre Comércio da América do Norte, o Nafta.

A trajetória de Brasil e Argentina mostra que a integração das economias foi mal concebida e isso determinou não só a desindustrialização relativa, mas também na perda de posição no ranking do valor agregado manufatureiro.

A teologia do saber convencional só revelará suas nefastas consequências daqui a algum tempo. Parece óbvio que os mercados financeiros globalizados, restaurados sua confiança pela intervenção munificente dos Estados nacionais, cuidam de patrocinar uma festa que pode terminar em ressaca, transformando a economia urbano-industrial brasileira em um espectro de si mesma. Os economistas do mercado voltaram às páginas dos jornais e das revistas para garantir que o déficit em conta corrente, a despeito de sua evolução para a casa dos 4% a 5% do PIB, é financiável. Nos anos 90, esse foi o mantra dos defensores do câmbio valorizado.

Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda e professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, escreve mensalmente neste espaço.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

A Guerra do Peloponeso e o Jornalismo de Aluguel


Tucídides, que viveu nas últmas décadas do século V AC pode ser considerado, depois de Homero, o escritor de influência mais fecunda na cultura ocidental. Sua mais notável obra foi a "Guerra do Peloponeso", em que relata esse memorável evento político-militar que, pela primeira vez, opôs duas das maiores cidades-estados gregas (Atenas e Esparta) e cujo defecho deflagrou o apagar do chamado "fogo grego" depois do declínio ateniense na região.
A obra de Tucídides é até hoje referência nas academias militares estadunidenses e nos mais renomados cursos de diplomacia, em razão de ter sido a primeira a descrever um conflito cujas características incorporam os principais elementos que marcam os conflitos modernos: a disputa pela hegemonia geopolítica entre Estados, a constituição de blocos de alianças, a criação de instâncias de articulação política e a formulação de estratégias militares consagradas.
O evento ganhou projeções históricas pelo fato de que seu desfecho permitiu a Estados governados a "manu militari", a moda de Esparta, estabelecerem-se como modelos de organização política de eficácia, depois reproduzidos na forma de ditaduras e aparatos militarizados pelos tempos afora. A possiblidade de variantes de Estados totalitários que se abriu à história, a partir daí, só não se revelou mais nociva à disseminação de sociedades democráticas em razão da posterior sucesso dos vencedores espartanos (em aliança com os derrotados atenienses)em esmagarem as tropas Persas na batalha de Salamina. Vitória essa que, caso não ocorresse, exporia a civilização ocidental a antecipada decadência no cuso da trajetória que a levou da Roma antiga à Washington contemporânea.
Tucídides conferiu ele mesmo à obra caráter irrevogável de obra "mais importante já escrita" em seu gênero, sustentando que o critério que orientou sua redação consistiu no relato isento dos fatos, sem a tomada de posições pessoais ou julgamentos de valor, pelo que lhe reinvidicava o significado de primeira narrativa histórica.
Assim tomada, a obra tornou-se referencial a uma ética de escrita não facciosa depois apropriada pelo jornalismo moderno como atributo distintivo do texto jornalístico.
Chamada pelo escritor de "patrimônio perene da humanidade", a obra foi apresentada como sendo guiada pelo propósito de servir aos homens, no sentido de que pudessem antecipar-lhes eventos de igual potencial destrutivo.
É contra essa mística da obra, depositária de segredos da arte da política e da guerra, que o renomado historiador Donald Kagan da Universidade de Yale investe ao demonstrar que "A Guerra do Peloponeso" teve por finalidade primeira justificar erros cometidos pelo próprio "pai da democracia ateniense", Péricles, na condução dos assuntos de Estado e na salvaguarda dos interesses da pólis que liderava e cuja derrota trouxe por consequência não só a derrocada da liga de Delphos, centro daquela experiência democrática primeva, como também da hegemonia grega no mundo antigo.
Sem arranhar os méritos e o reconhecimento devido ao grande historiador grego, Kagan mostra como detrás da política que engendrara a guerra havia ainda outra, urdida pelo "stablishment" de que fazia parte Tucídides, a fim de que a figura de Péricles viesse ser preservada e com ela os interesses do esquema de poder que o sustentava, no qual Tucídides tivera papel destacado como instrutor militar e conselheiro do mandatário.
Kagan revela a forma pela qual a obra funcionou como uma espécie de "salva-faces" de proporções históricas, inaugurando uma prática de registro documental posteriormente apropriado pela imprensa escrita com a finalidade veícular visões de mundo e construções discursivas aptas a reprodução do status quo.
O livro foi publicado em 2006 no Brasil pela Editora Record. Sua leitura vale a pena pela oportunidade que oferece de reflexão sobre a insustentável leveza do relato lavrado pela pena do jornalismo, em tempo nos quais falar-se em isenção do texto soa brincadeira.