Total de visualizações de página

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Deveras Perigoso




Mais que verbete, "deveras" é palavra quase em extinção. Seu declínio se deveu a essa vitalidade própria às línguas que, sempre criativas, forjam signos que melhor correspondam aos valores do seu tempo. Como exemplo, na frase "deveras importante", o termo exprime referência a uma classe de epifenômenos que dispensariam questionamento devido sua conformidade aos costumes ou leis naturais que lhes sirvam de fundamento. De resto, aplicável a tudo que dispense demonstração de validade, o conceito "deveras" adquiriu natureza circular, instituindo-se como chave consevadora pela qual busca se afirmar a irredutibilidade dos fatos com relação aos argumentos. Categorias incontrastáveis porque distintas.
Etimologicamente, o sentido de verdadeiro pespegado às idéias marcadas com o qualificativo do "deveras" deita raízes no radical latino "veras" ou verdade, cujo substrato semântico dá também origem ao termo "verossímel" ou o que parece verdadeiro. Do que dá mostra a língua italiana ao valer-se da expressão "é vero" para imprimir o signo do aceitável a diferentes classes de asserções do repertório linguístico.
A inspiração platônica do bordão "é vero" ou "deveras", reivindica ao fenômeno atributo de coisa verdadeira mediante apelo a uma razão justificadora de ordem imanenente, que, polar ao falso, apresenta-se ao "espírito" como uma espécie de universal dotado de eterna beleza e justiça divina .
Foi portando carga semântica desse tipo que o "deveras" transitou nas democracias modernas ao "inconteste", sob cujo selo fatos culturais e políticos passaram a ser legitimados e resguardados da subversão sem fim de idéias alternativas que ameaçassem sua condição de discursos estabelecidos e já ideológicos.
Daí ser o preconceito o fundamento do que se convencionou chamar de "verdade" nos embates travados no interior do regime democrático, onde o "inconteste" ou o "deveras verdadeiro" almeja a hegemônia ao custo do encobrimento da diversidade e da diferença, esses sim valores definitivos porque concernem à regra de ouro do próprio jogo democrático .
Exemplar nesse sentido do falso verdadeiro foi a justificativa de um candidato nas atuais eleições presidenciais brasileiras ao dirigir à adversária acusações de que o partido que a sustentava estaria envolvido com narcotraficantes e agentes policiais clandestinos. Quando perguntado sobre as bases fatuais das suas afirmações, respondeu o político: "ora, isso tudo mundo sabe...". Poderia ter dito também "é deveras sabido" e até os romanos o teriam entendido, dado que já naquela sociedade patriarcal subsistiam os párias, estamento em relação ao qual não se cogitaria a concessão do contra-argumento.
Indo mais longe, em atitude reveladora da sanção emprestada pelas instituições aos preceitos tidos por "deveras verdadeiros", pediu aos tribunais o candidato em questão que suprimissem das cédulas eleitorais o nome da opositora que, naquele momento, caminhava pelo dobro de votos para a consagração nas urnas.
Mas se a democracia tem suas escoras fundadas em verdades hegemonicamente construídas, ao menos constiui método de práticas sociais em que tais verdades podem ser contraditadas e, no limite da recusa, expostas pelo clamor das ruas à hipótese de sublevação popular para que se instale pela força nova ordem de valores que façam emergir verdades alternativas também elas "deveras verdadeiras".
No caso, não aceitaram os tribunais o pleito de interdição à outra verdade, destituida do atributo moral do inconteste. Melhor assim, poupou-se sangue. Pois, exceto pela rigorosa observância das regras do jogo democrático, morre-se por crenças como morre-se por verdades.

Um comentário:

  1. Parabéns pela iniciativa, Luiz!
    Acabou saindo na minha frente, ainda que eu tivesse feito a promessa, acabei não cumprindo. Agora me cabe a vergonha da desonra à palavra e o remendo na forma de dever.
    Gostei da menção na linha chomskiana do "manufacturing consent", em que o consenso é construído pela midia de maneira a só se abordar uma gama limitada de opiniões, fora das quais não é permitido pensar nem estabelecer qualquer análise junto à sociedade.

    Até colo aqui alguns videos com a finalidade de estabelecer complementações e paralelos às situações que você colocou:

    "Este link: http://bit.ly/9zmuaV
    É parte do sonho democrático do José Serra: http://tinyurl.com/36am4ho
    Carmona e Serra têm mais q calvície em comum "

    Consenso contruído:
    Entenda como José Serra afundaria o Brasil durante a Crise
    http://www.youtube.com/watch?v=Ig9pE6qwzxw

    ResponderExcluir