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terça-feira, 7 de setembro de 2010

A Guerra do Peloponeso e o Jornalismo de Aluguel


Tucídides, que viveu nas últmas décadas do século V AC pode ser considerado, depois de Homero, o escritor de influência mais fecunda na cultura ocidental. Sua mais notável obra foi a "Guerra do Peloponeso", em que relata esse memorável evento político-militar que, pela primeira vez, opôs duas das maiores cidades-estados gregas (Atenas e Esparta) e cujo defecho deflagrou o apagar do chamado "fogo grego" depois do declínio ateniense na região.
A obra de Tucídides é até hoje referência nas academias militares estadunidenses e nos mais renomados cursos de diplomacia, em razão de ter sido a primeira a descrever um conflito cujas características incorporam os principais elementos que marcam os conflitos modernos: a disputa pela hegemonia geopolítica entre Estados, a constituição de blocos de alianças, a criação de instâncias de articulação política e a formulação de estratégias militares consagradas.
O evento ganhou projeções históricas pelo fato de que seu desfecho permitiu a Estados governados a "manu militari", a moda de Esparta, estabelecerem-se como modelos de organização política de eficácia, depois reproduzidos na forma de ditaduras e aparatos militarizados pelos tempos afora. A possiblidade de variantes de Estados totalitários que se abriu à história, a partir daí, só não se revelou mais nociva à disseminação de sociedades democráticas em razão da posterior sucesso dos vencedores espartanos (em aliança com os derrotados atenienses)em esmagarem as tropas Persas na batalha de Salamina. Vitória essa que, caso não ocorresse, exporia a civilização ocidental a antecipada decadência no cuso da trajetória que a levou da Roma antiga à Washington contemporânea.
Tucídides conferiu ele mesmo à obra caráter irrevogável de obra "mais importante já escrita" em seu gênero, sustentando que o critério que orientou sua redação consistiu no relato isento dos fatos, sem a tomada de posições pessoais ou julgamentos de valor, pelo que lhe reinvidicava o significado de primeira narrativa histórica.
Assim tomada, a obra tornou-se referencial a uma ética de escrita não facciosa depois apropriada pelo jornalismo moderno como atributo distintivo do texto jornalístico.
Chamada pelo escritor de "patrimônio perene da humanidade", a obra foi apresentada como sendo guiada pelo propósito de servir aos homens, no sentido de que pudessem antecipar-lhes eventos de igual potencial destrutivo.
É contra essa mística da obra, depositária de segredos da arte da política e da guerra, que o renomado historiador Donald Kagan da Universidade de Yale investe ao demonstrar que "A Guerra do Peloponeso" teve por finalidade primeira justificar erros cometidos pelo próprio "pai da democracia ateniense", Péricles, na condução dos assuntos de Estado e na salvaguarda dos interesses da pólis que liderava e cuja derrota trouxe por consequência não só a derrocada da liga de Delphos, centro daquela experiência democrática primeva, como também da hegemonia grega no mundo antigo.
Sem arranhar os méritos e o reconhecimento devido ao grande historiador grego, Kagan mostra como detrás da política que engendrara a guerra havia ainda outra, urdida pelo "stablishment" de que fazia parte Tucídides, a fim de que a figura de Péricles viesse ser preservada e com ela os interesses do esquema de poder que o sustentava, no qual Tucídides tivera papel destacado como instrutor militar e conselheiro do mandatário.
Kagan revela a forma pela qual a obra funcionou como uma espécie de "salva-faces" de proporções históricas, inaugurando uma prática de registro documental posteriormente apropriado pela imprensa escrita com a finalidade veícular visões de mundo e construções discursivas aptas a reprodução do status quo.
O livro foi publicado em 2006 no Brasil pela Editora Record. Sua leitura vale a pena pela oportunidade que oferece de reflexão sobre a insustentável leveza do relato lavrado pela pena do jornalismo, em tempo nos quais falar-se em isenção do texto soa brincadeira.

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